domingo, 25 de novembro de 2012

A VISÃO QUE SE DESPRENDE: MANET E O OBSERVADOR ATENTO NO FIM DO SÉCULO XIX

Resumo do texto de Jonathan Crary



O surgimento da visão subjetiva (1810 – 1840) foi um dos desenvolvimentos mais importantes da história da cultura visual (visualidade). O funcionamento da visão tornou-se dependente da constituição fisiológica, o que tornou a visão imperfeita, discutível e arbitrária. A visão ou qualquer um dos sentidos, não podia mais reivindicar uma objetividade ou certeza essenciais. Por volta de 1860, foram definidos os contornos de uma crise epistemológica, na qual a experiência perceptiva perdera as garantias em relação à criação do conhecimento.

Um regime disciplinar de atenção foi imposto pela lógica do capitalismo que tornou o problema da atenção fundamental devido à crise contínua sofrida por ela com a introdução de novos produtos, novas fontes de estímulo e fluxos de informação, respondendo com novos métodos de administrar a percepção.

O sistema econômico emergente demandava atenção em relação a uma ampla gama de novas tarefas produtivas, pois o capitalismo e a modernidade exigem que mudemos nossa atenção rapidamente de uma coisa para outra.


O problema da atenção é moderno. A atenção era o local de observação, classificação e mensuração, através da qual muitos conhecimentos foram acumulados.

A atenção e a distração não eram dois estados essencialmente diferentes, mas conviviam juntas. A atenção se intensificava e diminuía, subia e descia, de acordo com um conjunto de variáveis. Ela foi descrita como o que impede nossa percepção de ser um fluxo caótico de sensações. É muito mais que uma questão de contemplação, de olhar, de oticidade. A visão é a camada de um corpo que pode ser capturado.

Vários estudos sobre atenção a distinguem em duas formas. A primeira era a atenção consciente e voluntária, orientada por tarefas e associada a comportamentos mais desenvolvidos. A segunda era a atenção automática ou passiva, que incluía as áreas da atividade habitual, fantasias, devaneios. Mas essa teoria nunca foi totalmente confirmada.


É possível fazer uma conexão entre a atenção e um quadro do pintor Edouard Manet (pintor francês nascido em 1832 e falecido em 1883). Uma das figuras mais importantes da arte do século XIX. Suas principais obras foram: Almoço na relva ou Almoço no campo, Olímpia, A sacada, O tocador de pífaro, A execução de Maximiliano e Na estufa (Dans la serre) de 1879, que será analisado aqui.

“Na estufa” foi exposto no Salão de 1879 e provocou reações fortes e críticas por Manet ter se afastado de seu estilo mais ambicioso e por fazer concessões ao público ao pintar mãos e faces com mais cuidado que o normal. Outros consideram esta obra mais conservadora por trazer  pouco da inventividade e audácia de outros quadros. Talvez ele tenha modificado seu estilo, para uma maior aceitação, depois da rejeição sofrida no Salão de 1970.

O quadro é como um mapeamento complexo das ambigüidades da atenção visual.

Foi denominada de facialidade o predomínio da face nos quadros. Manet pintou  cuidadosamente a face feminina. Essa parecia ser uma mudança em sua prática. Em grande parte da obra de Manet, a impressão e a atmosfera da face tornam-se um terreno novo e inquietante.

Alguns pontos de compressão e restrição prendem a mulher, como o espartilho, cinta, pulseira, luva e anel. Em contraponto com a figura curvada e encolhida do homem. O que indica sujeição e coação numa corporalidade organizada e inibida. Os potes  de vasos e flores também representam uma clausura, como um instrumento de domesticação. Até mesmo a grade do banco é um pequeno eco da figura cilhada da mulher, como se a madeira estivesse comprimida por uma presilha.



A sensação de estar preso, também é devido ao emaranhado de verde atrás das figuras. Manet aplicou uma camada de tinta tão espessa na vegetação, que ela parece estar mais próxima de nós do que o homem e a mulher.

A temática da pressão e compressão é sugerida pelo título do quadro Dans la serre. A palavra francesa serre, “estufa”, significava um lugar fechado e é também uma forma do verbo serrer que significa apertar, segurar com força, prender com firmeza.

A figura da mulher é um exemplo de palidez do vazio psicológico ou do descomprometimento relacionado a Manet? Ela está perdida em pensamentos, em absorção vazia ou em um quase transe? Nos é mostrado um corpo cujos olhos estão abertos, mas não vêem, não aprendem, não fixam. É possível vê-la como uma apresentação pública de domínio impassível do ego.

Há semelhança entre a posição das figuras no quadro e uma das primeiras formas de prática terapêutica: um método de ficar atrás dos pacientes histéricos e murmurar-lhes enquanto eles pareciam estar desatentos.


Manet sugere uma atenção e/ou distração ambíguas na forma como pintou os olhos do homem. Seus dois olhos são mostrados como separados. Um olho aberto, olhando além e talvez acima da mulher, enquanto do outro olho só se vê as pálpebras, talvez esteja olhando para o guarda-chuva da mulher, sua mão enluvada ou para o anel em seu dedo. São dois eixos óticos díspares, onde a pontualidade da visão é desfeita.

A energia de ligação vem das duas alianças de casamento, próximas uma da outra, perto do centro do quadro. Seria um par conjugal (os modelos para o quadro também eram casados), ou um encontro ilícito entre um homem e uma mulher casados com terceiros? Os anéis de casamento estão relacionados a desejo contido e canalizado como o torso com cinto e espartilho da mulher. É possível sugerir que o fato de as figuras estarem separados pela grade do banco, sem comunicação, represente uma noiva e um solteirão enredados por uma incompletude perpétua.

O não-acontecimento também é sugerido pelos dedos que por pouco não se tocam, uma tatilidade que se tornou anestesiada ou paralisada, mesmo que a mão da mulher esteja sem luva, pronta para iniciar ou receber uma carícia.

A efemeridade da atenção entrou em jogo com o surgimento do mundo mercantil da moda, como um comportamento produtivo da modernização. A figura da mulher adornada como uma flor entre as flores ou da moda como um avanço florescente, representa que a mercadoria é parte da organização sufocante do quadro.

O declínio do observador pontual ou ancorado aconteceu pelo sujeito atento instável. Um sujeito que irá se tornar o objeto de todas as indústrias da imagem e do espetáculo no século XX, incluindo o cinema.

* Todas as pinturas presentes nesta postagem são de autoria de Edouard Manet e o texto de Jonathan Crary.


Doe Medula Óssea. Doe vida para seu próximo:
Rodrigo Faro também apoia essa ideia.




5 comentários:

  1. Oi, Gilberto! É interessante ler sobre esses diversos aspectos, inclusive históricos, para compreender e atentar para a riqueza de detalhes das obras. Um abraço!

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  2. Como estudante de história....amei o texto.

    Amo apaixonado por arte....amei as imagens.


    abs

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  3. Ótimo texto.. simplificou e muito o texto de Jonathan Crary..

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