A primeira regra da adaptação cinematográfica
é seguida em parte por Steven Spielberg. Foram mantidos no filme a ingenuidade
de Cellie, sua fé, a luta dos negros do início do século passado em se manter
num mundo preconceituoso; as tragédias, tristezas e revelações de uma família.
Já os desejos lésbicos de Cellie são abrandados a tal ponto que no filme ficou
quase esquecido em uma única e discreta cena.
No livro, Cellie se refere várias vezes ao amor que sente por Docí Avery, como quando
ela deseja ir a seu show:
“Meu Deus, eu quero tanto ir. Num é pra dançar. Nem pra beber. Nem pra jogar
baralho. Nem pra escutar Docí Avery cantar. Eu ficaria gradecida só de poder
botar o olho nela.” (p. 36)
Ou em seguida quando Albert busca Docí, que está doente para cuidar dela.
Cellie fica eufórica:
“Eu acho que meu coração vai vuar pra fora da minha boca quando eu vejo um pé
dela aparecer.” (p. 57)
E quando finalmente as duas dormem juntas, Cellie reclama:
“Nunca ninguém gostou de mim, eu falei.
Ela falou, eu gosto de você, Dona Cellie. E aí ela virou e me beijou na boca.
Uhm, ela falou, como se tivesse ficado surpresa. Eu beijei ela de volta, falei,
uhm, também. A gente beijou e beijou até que a gente num conseguia beijar mais.
Aí a gente tocou uma na outra.
Eu num sei nada sobre isso, eu falei pra Docí.
Eu também num sei muita coisa, ela falou.
Aí eu senti uma coisa muito macia e molhada no meu peito, senti como a boca de
um dos meu nenê perdido.
Um pouco depois, era eu que era também como um nenê perdido.” (p. 130)
No filme tudo ficou reduzido a uma troca de beijos (no rosto) entre as duas,
carícias nas mãos e só.
Rubens Ewald Filho em seu livro “Dicionário de Cineastas” (2001, p. 679), fala
sobre isso quando biografa Steven Spielberg. “Não tem para ele temas muito
profundos. Pudico, não tem coragem de lidar com o homossexualismo (como provou
em A cor púrpura, uma fita onde visivelmente ele seguiu um story-board que fez
sem alma, porque não entende do problema do negro como demonstraria novamente
naquele que é certamente seu pior filme como diretor, Amistad).”
A segunda regra da adaptação cinematográfica, também foi seguida em parte, já
que Spielberg conseguiu captar grande parte do espírito do livro e de sua
magia, que o havia tornado irresistível ao grande público leitor e o fez ganhar
o prêmio Pulitzer. O filme tem cenas emocionantes e de grande dramaticidade.
A terceira regra não foi seguida. As mudanças feitas por Spielberg no
abrandamento do lado lésbico de Cellie não foram exigência para que essa
história funcionasse melhor como um filme e sim decisão de um diretor até então
covarde, que tinha medo da reação do público conservador frente a esse tema tão
espinhoso, ou que talvez quisesse ser melhor aceito pelos membros da Academia
de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (também conservadores), mas
não adiantou muito, já que o filme não recebeu nenhuma estatueta.
As cartas de Celli não trazem muitas descrições de paisagens e lugares, ao
passo que o filme tem uma belíssima fotografia bem colorida com os campos do
interior dos Estados Unidos. As cartas de Nettie, irmã de Cellie, que vira
missionária na África são bem mais detalhistas em relação a isso, mas essa
parte foi quase cortada no processo de adaptação.
O filme bem como o livro exala música, já que além de Docí, que é cantora,
Tampinha, a segunda mulher de Harpo também tem esse sonho. A trilha sonora do
filme foi composta por Quincy Jones e a canção “Miss Cellies Blues”, ficou
muito famosa, mas nem foi indicada ao Oscar.
A hoje milionária apresentadora Oprah Winfrey também estreou no cinema em A cor
púrpura, onde vive a sofrida Sofia, mulher de Harpo, filho do marido de Cellie,
que não aceita obedecê-lo e o abandona, briga com o prefeito, fica presa por
vários anos e depois sai para trabalhar como mucama da primeira dama.
É muito interessante a experiência de ler o livro e logo em seguida ver o filme
(ou vice-versa), pois todos os detalhes ainda estão vivos em nossa lembrança e
é possível avaliar se o diretor foi fiel ao espírito do livro e quais mudanças
foram necessárias para a transposição de um suporte a outro.
Vários autores concordam que nem sempre a adaptação mais fiel é a melhor e isso
é verdade. Steven Spielberg foi fiel em quase todos os pontos relevantes do
livro, com exceção do lesbianismo e mesmo assim o seu filme não é tão bom
quanto poderia ser. O livro é melhor (sem preconceitos de achar que a
literatura é uma arte superior), mais emocionante, mais detalhista, mais
humano, mas mesmo assim o filme merece ser visto.